domingo, 14 de agosto de 2011

"O estranho", reflete personagem de Italo Calvino, "é que até agora eu tivesse aceitado tudo"

Guia devaneia na Chapada Diamantina, abrigo de contraculturalistas no interior baiano (foto Jota Freitas)


Por Thiago Momm
Um dos melhores contos do escritor Italo Calvino (1923-1985) tem uma página e meia. Está no livro Um general na biblioteca e chama-se O raio. Em um cruzamento, “no meio da multidão, no vaivém”, um pedestre conta: “Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E comecei a rir. Pra mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.” Ele tenta explicar isso aos outros pedestres: – Tem algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! E ouve como resposta: – Está tudo no lugar, está tudo andando como deve andar, cada coisa está vinculada às outras, não vemos nada de absurdo ou de injustificado! Isso fez com que voltasse a ver tudo como os outros. Ele pede desculpas, “talvez eu é que tenha me enganado”, e conclui: “Mas mesmo agora, toda vez (frequentemente) que me acontece de não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante.” Vivam os acessos filosóficos. Como crianças em busca de porquês, nos espantemos até com gramados, casas, praças. E cismemos ainda mais com fardas, monumentos, alas vips, serviços de atendimento ao cliente, filas nas pontes. O quanto essas coisas não estão “afastadas do significado do mundo”? Por que as aceitamos? Tem algo estranho. Comecemos a rir. Mas acessos como o do pedestre de Italo Calvino eu tenho é diante das rotinas de trabalho. Por que trabalhamos tanto? Por que não quatro dias por semana, em vez de cinco ou seis? Por que mantemos um modelo criado por ingleses frios há mais de dois séculos? Já que Calvino me inspirou essas perguntas ingênuas, lembro também um delírio do segundo presidente norte-americano, John Adams: “Devo estudar a política e a guerra para que meus filhos tenham a possibilidade de estudar matemática e filosofia, navegação, comércio e agricultura e possam assim dar aos filhos deles a possibilidade de estudar pintura, poesia, música e cerâmica.” Claro, delírio mesmo, quase ninguém o escutou. Estamos cada vez mais envolvidos com comércio, até médicos, dentistas e farmacêuticos fazem MBA. Um absurdo que se soma a jornadas semanais de 60 horas, entre vários outros. Mas há exemplos de bom senso e eu os valorizo: Domenico di Masi segue sua com suas bandeiras a favor do ócio criativo, o Google libera certo tempo aos funcionários para cuidarem de projetos pessoais e Paul foi morar na Chapada Diamantina. O quê? Paul, um inglês amigo meu, trabalhou insanamente dos 19 aos 26 anos. Ficou acabado. Não via sentido no que fazia, aquela crise que muitos só têm aos 45. Com o dinheiro de tanta labuta, comprou um apartamento no centro de Londres, alugou-o e, com a renda, vive aqui no Brasil (aviso óbvio: não tente alugar um apartamento aqui para morar por lá). Depois de um tempo entre algumas capitais ele se mudou para a riponga Chapada Diamantina, no interior baiano. Não sou alternativo o suficiente para isso, fico aqui tentando encontrar tempo e coerências em plena cidade. Me motiva o fato de que existam Pauls e Calvinos.
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*Este texto foi originalmente publicado no dia 15/4 no caderno Variedades, do Diário Catarinense

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